Kensington Market - onde tudo começou

Os segredos viajam depressa em pequenas aldeias como aquela onde eu cresci, em Portugal. Por isso, não fiquei surpreendido quando o plano secreto do meu pai em trazer a família para o Canadá ricocheteou misteriosamente no paralelo dos caminhos estreitos da minha terrinha e chegou aos ouvidos de todos, até daqueles menos curiosos. Naquela época, não havia internet nem telemóveis, mas, mesmo assim, a notícia espalhou-se muito além das fronteiras da minha humilde localidade, para o outro lado do Atlântico, mais rápido do que o defunto Concord. Num momento, o meu pai fazia-nos o anúncio em segredo e, de seguida, o telefone fixo não parava de tocar. Um dos telefonemas chegou de um velho conhecido que morava em Toronto. Fui eu que atendi. Disse-me que queria falar com o meu pai, mas àquela hora eu estava sozinho em casa. Curioso, sondou-me e questionou-me, mas eu tinha poucas respostas para dar. Antes de desligar, pedi-lhe para deixar o seu endereço para que nos pudéssemos encontrar aquando da nossa chegada a Toronto. Ele soltou uma leve gargalhada e atirou:: “Não precisas do meu endereço. Tenho certeza de que nos vamos encontrar na Augusta.” E com isto, desligou.

Encolhi os ombros perante tal comentário e decidi dar-lhe pouca relevância, mas guardei-o na minha memória para eventualmente testar a sua veracidade. Por algum tempo, questionei-me sobre essa coisa de Augusta. Seria uma cidade, um parque, uma rua ou a casa de alguém? Fiquei curioso, confesso, mas também desejei nunca ter a oportunidade de descobrir porque, naquela altura, desprezava a ideia de me mudar para o Canadá.

O meu mundo despedaçou-se quando saí de Portugal e cheguei a Toronto no dia 28 de fevereiro de 1991. O frio congelava as minhas lágrimas, mas toda a minha alma chorava em desespero. Embora eu tivesse chegado ao Canadá, o meu coração ficara em Portugal e, com ele, todos os meus pensamentos. Por essa altura, a ideia de encontrar aquele velho conhecido na Augusta já estava profundamente enterrada no meu subconsciente. Já não era relevante. Tudo o que eu queria era voltar à minha pequena e insignificante aldeia situada entre os montes e o rio Cávado, no norte de Portugal.

Os meus pais alugaram uma cave na Borden Street, a norte da College, perto do Kensington Market. Os primeiros dias num novo país deveriam ter sido maravilhosos, mas tornei-os cinzentos, optando por ficar em casa para que minhas lágrimas não congelassem. Chorei, dias a fio, pelos meus avós, por todos os meus amigos de infância e pela Susana, mesmo sabendo que ela eventualmente partiria o meu coração... mas sentia tanta falta dela. Os meus pais tentaram tirar-me de casa, mas sem sucesso. Eu tinha lágrimas para chorar. Porém, um dia acordei sem vontade de chorar e um vislumbre de esperança acendeu-se no meu coração. Caminhei pelas ruas cobertas de neve e dei por mim no Dufferin Mall. Sem um tostão, admirei as vitrinas das lojas e maravilhei-me com a quantidade de pessoas que falavam português em meu redor. Inesperadamente, pela primeira vez, senti que o Canadá poderia ser a minha nova casa.

Então disposto a dar uma oportunidade a Toronto, aceitei o convite da minha mãe para ir às compras no Kensington Market, ali mesmo ao virar da esquina. Caminhámos para leste pela College Street, passando pelo velho quartel de bombeiros e por uma infinidade de pessoas que desfilavam pelo passeio, até que a minha mãe puxou-me em direção ao sul, para uma rua ainda mais movimentada. Um arrepio momentâneo percorreu a superfície da minha pele quando olhei para a placa da rua. Anunciava: “Augusta Avenue”. Aquele telefonema de um ano atrás invadiu a minha mente e as palavras que o meu velho conhecido havia proferido martelavam-me o cérebro enquanto me tentava distrair com o infinito de lojas que ladeavam a famosa avenida. Dei por mim a examinar freneticamente todos os rostos enquanto os meus ouvidos sintonizavam centenas de pessoas que falavam a minha língua. Se eu fechasse os olhos, transportar-me-ia à minha saudosa feira de Barcelos numa qualquer quinta-feira. Por entre tal deslubramento, questionei-me em silêncio: será que as palavras profetizadas pelo meu velho conhecido finalmente se manifestariam? 

A minha mãe ocupava-se a escolher as maçãs e as bananas mais perfeitas enquanto o espólio da nossa aventura balanceava por entre os meus dedos cerrados. O meu corpo rodou instintivamente após sentir um leve toque no ombro. Rotação completa, deparei-me com um rosto conhecido que me fitava com aquele olhar que, mesmo sem palavras, anunciava: eu avisei-te. Ainda supreendido por tal encontro, ouvi-o pronunciar triunfantemente: “Não te disse que nos íamos encontrar na Augusta?”

Vista sul na Augusta Avenue

UM ENCONTRO RECORRENTE

Esse meu encontro refletiu, numa escala muito menor, muitos outros encontros ao longo dos primeiros quarenta anos da presença portuguesa no Canadá. A área do Kensington Market foi, em essência, o berço da nossa comunidade em Toronto e, durante muitas décadas, também o seu núcleo.

A comunidade judaica, maioritariamente oriunda da Hungria, era a maior no quarteirão desde a década de XNUMX, embora os portugueses se tenham tornada concorrentes sérios durante as quatro décadas que se seguiram. Homens de todas as regiões de Portugal chegaram ao bairro e alugaram quartos individuais para poupar dinheiro. Alguns sonhavam em regressar a casa, mas a grande maioria acabou por ficar e por chamar a família. Uma vez reunidos com as esposas e fos ilhos, compraram ou alugaram casas na área e continuaram a frequentar a Augusta Avenue e as artérias adjacentes.

Esta afluência significativa de portugueses levou, naturalmente, à criação de organizações empresariais e sociais na área. O Sousa's Restaurant abriu junto ao cruzamento da Nassau Street com a Bellevue Avenue, o Portuguese Bookstore estabeleceu-se do outro lado da rua, mais tarde uma loja chamada Casa Açoreana surgiu na Baldwin Street, e pouco depois a Lisbon Bakery agraciou a comunidade com a primeira fornada de pães e doces portugueses no Canadá. A St. Christopher House oferecia uma creche e aulas de inglês para os imigrantes portugueses, bem como apoio com documentos governamentais e outros assuntos. Todo este movimento obrigou à inauguração de um Consulado oficial de Portugal em Toronto para servir uma população em constante crescimento.

O First Portuguese Canadian Club foi fundado em 1956. Situado junto ao Sousa’s Restaurant, oferecia atividades culturais, desportivas e sociais e apoiava toda a comunidade com assuntos variados. Foi dentro dos muros da associação que se formou o primeiro rancho folclórico no Canadá (Grupo Folclórico da Nazaré) e muitas outras organizações ao longo dos anos, incluindo a Aliança de Clubes e Associações Portuguesas do Ontário (ACAPO). Para muitos, o First Portuguese foi o local de referência para todos os aspectos da vida, incluindo a resolução de assuntos governamentais e o preenchimento de documentos oficiais.

A Igreja de Santa Maria, localizada na Bathurst Street, a sudoeste do Kensington Market, tornou-se a paróquia da comunidade, embora um padre alemão que trabalhara no Brasil já celebrasse missa em português na Catedral de Saint Michael no início dos anos cinquenta. No final da década, a Paróquia de Santa Maria tinha um padre português a tempo inteiro e, em 1964, dois outros párocos chegaram para apoiar uma comunidade vigorosa.

Vista leste na Baldwin Street

Embora muitas empresas e organizações tenham sido formadas, poucas permaneceram na área após as primeiras três décadas da presença oficial Portuguesa no Canadá. O Tivoli Billiards, fundado no início dos anos sessenta, foi uma dessas excepções, pois testemunhou os dias de crescimento e solidificação e, mais tarde, do êxodo da comunidade para outras partes da cidade. Reza a lenda que os taxistas que trabalhavam no aeroporto Lester B. Pearson International não precisavam de mais informações após tomarem conhecimento de que o viajante era um novo imigrante português. Sem mais conversa, deixavam o cliente em frente do Tivoli Billiards onde, em poucas horas, os recém-chegados encontravam trabalho e alojamento.

Após a minha chegada ao Canadá, em 1991, o meu pai tinha por hábito levar-me ao Tivoli, junto com meus irmãos, todos os domingos de manhã, depois da missa. O local estava sempre lotado, mesmo não servindo bebidas alcoólicas na época. Uma nuvem de fumaça pairava no ar enquanto dezenas de homens conversavam em alto som e tomavam café e refrigerantes. Ao longo do longo salão havia mais de uma dezena de mesas de bilhar, todas elas ocupadas por jogadores que encantavam um público curioso, enquanto outros esperavam pacientemente pela sua vez. Neste estabelecimento, conheci portugueses e luso-canadianos de todas as esferas da vida, desde o homem que limpava o centro comercial àquele que se tornara milionário. Para muitos como eu, o Tivoli tornou-se o centro da comunidade, pois permaneceu como ponto de encontro durante vários anos após a minha chegada ao Canadá.

Foi no estabelecimento que comemorei, junto com meus irmãos e amigos, a vitória do Toronto Argonauts na Grey Cup e a vitória de Portugal na final do Campeonato do Mundo FIFA Sub-20 sobre o Brasil em 1991, as vitórias dos Blue Jays na MLB World Series em 1992 e 1993, a época inesquecivel dos Toronto Maple Leafs que terminou com uma derrota amarga perante os LA Kings em 1993, e o inesquecível empate do Benfica por 4-4 no terreno do Bayer Leverkursen em 1994, entre tantas outras memórias.

Depois que sairmos da área, o Tivoli Billiards continuou a chamar por nós. Embora existissem vários bares e cafés portugueses no nosso novo bairro, a norte da cidade, os meus irmãos e eu, juntamente com um grupo de amigos, conduzíamos mais de meia-hora para jogarmos bilhar ou assistir a jogos de futebol no Tivoli. Tal ocorreu durante muitos anos até que o estabelecimento fechou as suas portas, por volta da viragem do milénio. O seu encerramento marcou o fim de uma era para muitos recém-chegados e, particularmente, o fim de um capítulo notável na história da comunidade portuguesa em Toronto.

Embora ainda possam ser encontrados alguns vestígios da presença portuguesa na zona do Kensington Market, os menos conhecedores da história do bairro não farão ideia da sua extraordinária influência na formação da comunidade. O português já não é muito falado nos passeios que ladeiam a Augusta Avenue, e os recém-chegados já não reencontram aqui velhos conhecidos. A memória individual e colectiva, juntamente com um escasso número de pesquisas académicas e reportagens de jornais, permanecem como relatos parcos mas valiosos de uma história que não podemos permitir que desapareça junto com o falecimento daqueles que a viveram pessoalmente.

Ajude-nos a expandir este capítulo da nossa História. Para entrar em contato conosco: se gostaria de partilhar memórias ou experiências relacionadas com o Kensington Market ou se conhece alguém que nos pode ajudar a expandir esta parte de nossa história. Também aceitamos fotos e artigos, escritos em português ou inglês. Juntos, vamos escrever a nossa história.

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